A génese do Coro D.Pedro de Cristo constitui um dos exemplos da fecundidade das crises. A Bíblia Sagrada, logo no III.° capítulo do Génesis, explica que a gravidez ocasionará incómodos e que o dar à luz é acompanhado de “muitas dores” (Gen. 3, 16).
Transposta esta situação para a sociedade, diremos ser natural que as coisas boas sejam originadas nas crises de que a sociedade ciclicamente vai sofrendo (mau será que as dores não sejam de parto - que as crises sejam estéreis).
A “crise académica” de 1969-70 foi, provavelmente, a maior crise da sociedade portuguesa do séc. XX, talvez deva mesmo pensar-se que ela, ao manifestar-se, em 1969, já tinha pelo menos dez anos de gestação. O certo é que foi em 1969 que a crise se manifestou exactamente no ambiente populacional dos que nada podiam perder, para além de o atraso de algum tempo no início de uma carreira profissional – os estudantes universitários.
Pelo que respeita ao meio académico coimbrão, e exceptuando as eleições para as direcções da Associação Académica, vivera-se, desde há gerações, um ambiente pacato, interrompido pelo surgir do CITAC, no que respeita à arte teatral (o TEUC ia-se renovando através de actualizações moderadas de Gil Vicente, mas sem provocar conflitos abertos).
A música era praticada por dois organismos, ambos já “velhinhos”, mais interessados no espalhar do ambiente saudosista dos antigos estudantes do que no cultivar da arte musical.
O TERRAMOTO CULTURAL PÓS-1969
Em 1969 abriu-se a terra, escancarou-se o vulcão (a “terra académica” já havia estremecido em 1962-63). O Centro Académico de Democracia Cristã (CADC) não podia ficar imune a este fogo, ao mesmo tempo devorador e purificador.
Também ali parecia ter-se registado algum conformismo, apesar do ar novo que a equipa de assistentes eclesiásticos insuflava com o poder que beneficiava do prestígio cultural e moral de um chefe natural que se chamou Urbano Duarte.
A casa abriu-se, arejou, em todos os aspectos, as mentalidades pluralizaram-se. Foi neste ambiente de pensamento plural que se organizaram núcleos à volta da actividade central que se chamou “Centro de Estudos Teológicos”, que, volvidos poucos anos, havia de metamorfosear-se em “Instituto Justiça e Paz”. Os frequentadores eram convidados a participar na Eucaristia que se celebrava aos sábados de tarde no salão do primeiro andar e, entre os frequentadores, tinha-se formado um grupo que entoava cânticos apropriados à celebração. Foi este o núcleo do Coro D. Pedro de Cristo.
Sem preocupação de estatutos ou regulamento, começaram os ensaios de programa misto sagrado e profano, com a intensidade que o entusiasmo impelia, ao ritmo binário (dois por dia) e em andamento allegro com fuoco, em 10 de Março de 1970.
Foi durante os próprios ensaios, sem necessidade de formalismos, que foram escolhidos o nome e o ideário.
Como a primeira obra de fundo tinha por autor D. Pedro de Cristo, foi com toda a naturalidade que, por unanimidade, surgiu o nome deste compositor de Santa Cruz de Coimbra como patrocinador do grupo. E o programa também se foi desenrolando, sob o signo da exigência de qualidade (então quase nada em voga) e de um aceitável portuguesismo sem nacionalismos limitativos.
CARACTERÍSTICAS DO CORO
A apresentação do Coro D. Pedro de Cristo realizou-se, em 19 de Junho de 1970, nos claustros do Mosteiro de Santa Cruz, com a colaboração da Paróquia de Santa Cruz e da Câmara Municipal de Coimbra.
Estava formado o Coro D. Pedro de Cristo, em todos os aspectos: quanto ao programa musical, já que iria dedicar de futuro a sua actividade a autores do mesmo quilate, desde os polifonistas Thomas Morley, J Arcadelt, O. Lasso, Banchieri, Palestrina, passando pelos românticos (com especial destaque para Schubert e Brahms) até aos modernos Strawinski, Sousa Santos, Manuel Faria e Joel Canhão; quanto à mentalidade, já a base da sua organização produziu algum espanto e erradas interpretações: era muito semelhante à de uma democracia de base, sem direcção, sem eleições - todas as resoluções, a começar pelas respeitantes a todas as apresentações em recitais ou actividades semelhantes eram decididas por votação feita no final de cada ensaio.
E mais ainda: no que respeitasse a actividades de natureza mais delicada, como relacionadas com religião, um só elemento podia impedir a participação do coro, restando apenas a possibilidade de, após troca aberta de pontos de vista, chegar a acordo com os seus companheiros.
Esta regra era de importância capital, dada a particularidade de no Coro participarem elementos de diversas religiões, ou até sem religião alguma (agnósticos); o futuro impunha uma convivência perfeita - único meio de conservar o ambiente de compreensão e amizade, principalmente naquela participação frequente em liturgias católicas e actividades ecuménicas.
Mais recentemente, o coro viu-se na necessidade de se organizar sob a forma jurídica de associação e, consequentemente, de passar a ter uma direcção e restantes elementos organizativos; mas a prática de democracia de base mantém-se, com efeitos promissores de convivência amiga.
O espírito que caracteriza a sua orientação social foi expresso no programa do recital de 19 de Junho de 1970, espírito esse que permanece ainda: “O Coro D. Pedro de Cristo, para além da cultura dos seus componentes e convivência através do canto, propõe-se contribuir para a animação e renovação das liturgias, bem como para a difusão da arte musical para um público que geralmente não participa em espectáculos. Do mesmo modo, procurará ser uma mensagem de Boa Nova, de alegria, junto dos inválidos, dos presos, e das crianças e de todos quantos estão privados da partilha de manifestações deste género”.
FRANCISCO FARIA
Director Artístico do Coro D. Pedro de Cristo
in Rua Larga, RL#11, 2006